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A vertigem da escrita de um corpo pela linguagem das flores

por Bianca Coutinho Dias

A lembrança mais remota da relação de Marina Schroeder com a arte vem da infância, quando foi inscrita pelos pais em um curso de arte. O retorno às origens, depois de um percurso profissional como arquiteta na área de cenografia e decoração de eventos, se deu durante a pandemia, quando montou um ateliê em sua casa. O local logo ficou pequeno, surgindo a necessidade de expansão para fora daquele espaço de criação e trabalho. Depois de um curso de pós graduação em práticas artísticas, veio a clareza de sua paixão.

 

A partir de outro ponto e em um caminho em que nada se perde, a artista reinventa sua trajetória. Da arquitetura temos a presença dos materiais e a relação com as formas – seja por blocos de concreto, na sustentação de paredes em uma série que abriga muito do pensamento escultórico, ou por placas de fórmica que recebem tinta acrílica e óleo em bastão. Na série “Paredes”, a artista investiga camadas e peles da parede física. Nesta investigação, os bolores encontrados na madeira compensada se tornam um elemento central do trabalho, a geografia de onde parte um pensamento que conjuga morte e vida. As camadas criam uma cartografia cromática, adensando a relação com a forma e a cor. Surgem também as rosas, delicadas e frágeis: com o passar dos dias acabam por apodrecer, evocando a finitude e o tempo. O olhar da artista subverte o caráter efêmero das festas e revela o aspecto turvo de uma presença vegetal que abriga como metáfora a dimensão trêmula da vida humana.

 

Tendo a pintura no centro, de seu percurso derivam outros processos de experimentação, como escultura e fotografia. Em uma prática elaborada no fazer e na pesquisa, a artista utiliza diferentes materiais – tinta acrílica, pastel oleoso, óleo em bastão, carvão, gesso spray, resinas, esferográfica – em relação com a paisagem e a abstração, evidenciando a dimensão pulsional no gesto que escorrega e deixa rastros como uma dança no infinito. Sua pintura é forjada na atração por contrastes e forças visuais diversas que estão além da figuração e se encontram na potência dos gestos pictóricos que a anatomia das flores pode dar à pintura.

 

O fascínio pelas proporções, materialidade e aspectos cromáticos das rosas culminam em pesquisas experimentais, como papéis feitos com resíduos florais e operações gestuais de limpeza que reinserem na cena as sobras das festas: para além daquilo que, como os bolores, parece repugnante e inadequado, o olhar da artista mira a beleza convulsiva que emerge daí. De paisagens oriundas do apodrecimento se revela a dimensão do êxtase se contrapondo ao horror. Do reino dos fungos a artista extrai vida, cores e texturas e, capturada pelo aspecto indomável cria, com assombro, desenhos de mundos que se fazem a partir de uma materialidade viva e ambígua. “Perfeitos contrários”, nas palavras de Georges Bataille.

 

No processo de residência artística – realizado no galpão de flores André Pedrotti, para onde a artista retorna para uma imersão – se revelam novas camadas de sua relação com as flores: “Ao despetalar as rosas o ciclo da vida se instaura, tantas camadas se revelam e aparece o bolor, que de repudiante, é também uma nova vida nascendo”. Percebe-se, na residência realizada no local em que trabalhou por anos, que em seu processo criativo uma matéria-memória se reinventa e produz o deslocamento da experiência: olhando ruínas e sobras de festas, a artista consegue dizer o indizível e transmitir o intransmissível. Seu gesto convida à contemplação de outros aspectos da presença das coisas, a contrapelo de um mundo em constante aceleração e descarte da experiência em que a dimensão da ruína que nos constitui é anulada. A artista mergulha na matéria morta e nos resíduos, estabelecendo uma poética dos restos escrevendo um novo corpo.

 

Capaz de fabular no espaço entre a mão e o olho e, no  manuseio de gestos, cores e texturas, Marina pinta o que reviu e o que transviu. Na percepção singular da coisa em presença indomável, a dimensão do detalhe se presentifica através de um corpo pictórico que pende entre o etéreo e o palpável, o volátil e o imperativo. Na imersão, a artista escava materialidades que dialogam com o ponto fulcral de seu trabalho: as questões do tempo e da memória. Da beleza convulsiva das flores, passando pela botânica e anatomia, a partir de rituais que incluem uma delicadeza furiosa – como o gesto de limpar rosas – ela extrai uma visceralidade tão contemplativa quanto violenta e abissal. Marina cria um exercício de dissecação das flores, mostrando os fragmentos como revelações de partes que reinventam um lugar para a ferida, como meio de materializar uma violência que permanece encoberta pelo todo em um gesto ambíguo de profanação e de saudação da beleza.

 

A cor penetra o trabalho, do vermelho – criando relações entre o espanto do corpo biológico e a poesia – estabelecendo contato entre a seiva e o sangue, passando por flores alvas com outros tons, ao rosa – que evoca a pele ou o rubor. Em alguns momentos, a relação cromática comparece como uma espécie de intensificação, uma evocação da visceralidade, presença da carne e do informe; em outros, com tons pálidos e aquarelados como atenuação, mas também inquietos e instáveis. Se o vermelho se impõe como algo do sangue, da herança, da presença da catástrofe, os outros tons parecem buscar algo ainda por nascer.

 

Nesse liame a artista encontra materialidades diversas e heteróclitas e, das pinturas ao pensamento escultórico, em um esforço para adentrar um novo espaço no mundo, revira o corpo. Em uma figuração barroca que abriga a arte da ruína, do esboço e do inacabado, ela nomeia o trabalho e renomeia a si com contundência e delicadeza: uma artista surge e se reinventa no emaranhado de flores e suportes que retêm os estilhaços da memória e lhes dão significado.

 

Flores em estado de decomposição portam toda a questão da ferida e também da cura. Segundo Jean Genet “a beleza é uma ferida”, e o trabalho de Marina encontra essa vertigem, entrecruzando o mundo vegetal e a presença humana em nervuras infinitas e torções múltiplas corporais e psiquícas. 

 

A partir das flores, seu próprio corpo se escreve no mundo. Em sua escavação – com dissecações, aberturas, camadas e cortes – a artista revira a matéria do mundo e da dor, e refaz o regime da visibilidade com espaços vazios na pintura e pequenas transparências difusas que recriam um lugar para a neblina. Na alquimia entre os elementos diversos, ela coloca o dedo na ferida para dali extrair o claro e o escuro da vida. Entre o assombro e o alumbramento surge uma obra avessa a qualquer monumentalidade e apresenta com sutileza vulcânica e decidida um “real” capaz de redesenhar sua relação com o mundo.

 

Ao final da residência artística Marina revela, dos lampejos imagéticos do seu trabalho, os índices de uma relação em que, conjugando violência e leveza, densidade e volatilidade, algo transborda. Paisagens abrigam reflexos e transparências que suprimem a diferença entre dentro e fora, fazendo desabrochar na imagem uma dimensão que amplifica o mistério da aparição. Como um convite para borrar fronteiras, no meio dessa concentração de vida e exuberância somos levados por impregnação à potência do mundo. 

 

Marina escava o visível e fere o legível e, ao criar uma rasgadura que leva a dimensão da experiência e da pintura aos confins onde experimentamos um efeito de vertigem que se infiltra na imagem, reinventa o mundo e um lugar para si mesma. Como um poema de Herberto Helder, o sublime é algo que está sempre à espreita: “Sei que os campos imaginam as suas próprias rosas. / As pessoas imaginam seus próprios campos de rosas. / E às vezes estou na frente dos campos como se morresse; / outras, como se agora somente eu pudesse acordar. / Por vezes tudo se ilumina. / Por vezes canta e sangra”.
 

Bianca Coutinho Dias | junho 2024
 

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