Aquilo que não vemos
por Rejane Cintrão
Nascido na Alemanha, o pai de Marina Schroeder morava no Brasil quando o muro caiu, precisamente em 9 de novembro de 1989, o que, convenhamos, não faz muito tempo. Para nós, aqui no Brasil, não mudou muita coisa, já que a guerra fria afetava mais os países acima do Equador. Mas, para quem nasceu em uma cidade que ficou dividida por décadas, significou muito. Afinal, a qual lado as pessoas que moravam nessa cidade pertenciam? Bastava a queda do muro e tudo voltaria ao normal? Famílias divididas que ficaram sem ser ver durante décadas. Parece inacreditável, mas estamos vivendo uma situação muito parecida na Ucrânia atualmente. Por estas e muitas outras razões a série “O lado de lá” da artista é tão atual, e sempre o será.
“O lado de lá” são esculturas realizadas com tijolos de cimento e pedras semipreciosas amarradas por meio de delicados arames dourados. Materiais simples que têm um significado enorme para quem já esteve em uma situação de guerra, obrigado a viver em outro país, outra cultura, sem saber do paradeiro de sua família. A poética e força deste trabalho estão justamente na simplicidade dos materiais empregados para construir as esculturas. O quarto rosa flutua, quase num passe de mágica, no vazado do tijolo suspenso por finos fios de arame. O título do trabalho diz tudo. O que é o lado de lá? E o lado de cá? Não deveria haver lados, já que a terra é redonda, e o objetivo da globalização era unir povos e culturas. Nunca fomos tão desunidos, e as culturas tão desrespeitadas. “O lado de lá” também pode ser vista como uma série de belas esculturas/amuletos, já que o quartzo rosa é o elemento que nos salta aos olhos, tanto por sua beleza quanto pelo significado. Mas, ainda, pode trazer uma outra questão não menos cara à Marina. Dar luz a materiais que não são enaltecidos ou vistos no nosso dia a dia. Da mesma forma que não vemos o que acontece à nossa volta.
Formada em arquitetura, Marina trabalhou durante 20 anos na área de eventos, unindo muita criatividade e dedicação. A arte esteve presente em sua vida desde a adolescência. No trabalho não foi diferente. É necessário muita pesquisa e criatividade para criar um ambiente que esteja à altura dos sonhos das pessoas. Seja em casamentos ou eventos corporativos. Pesquisa sobre flores, ambientes, sons, mobiliários, luz. Uma verdadeira instalação artística. Em outras palavras, a arte já fazia parte do trabalho de Marina há muito tempo.
Observadora, esta artista realizou uma série inspirada em fungos, organismos com os quais convivemos no dia a dia em nossa casa - nos alimentos que comemos, no nosso corpo-, e raramente vistos, tampouco desejados. Entretanto, foram precisamente as marcas deixadas por esses seres nas paredes de sua casa que a levaram a fazer uma extensa pesquisa expressa em pinturas, aquarelas e objetos transformados em verdadeiras paisagens.
Os trabalhos de Marina resgatam histórias de forma muito sutil, quer pelos títulos das obras, quer pela delicadeza das pinturas que transformam fatos de sua vida - e marcas deixadas por aquilo que não queremos ver -, em belas pinturas, objetos e fotografias. Marcas de nossa história que, por vezes, temos urgência em apagar. Mas, essas marcas existem, são presentes, têm beleza e extrema importância.
Marina dá luz àquilo que não é visto, mas que faz parte da vida. Porque vida e arte são uma coisa só.
Rejane Cintrão | setembro 2023